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Proposta de Paz
há 3 anos
Uma economia que ofereça esperança e dignidade (parte 4 de 8)
Secretário-geral António Guterres (na tela) discursa na reunião sobre mudanças climáticas realizada em sede da ONU (Estados Unidos, set, 2021)
02/05/2022

O terceiro desafio é desenvolver uma economia que inspire esperança nos jovens e permita que as mulheres brilhem com dignidade.
Estima-se que o equivalente a 255 milhões de postos de trabalho foram perdidos por conta da Covid-19 e de seus efeitos devastadores na economia global.28 Uma questão de particular preocupação é quão gravemente os jovens foram impactados. As últimas estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) indicam que o emprego para os jovens ao redor do mundo diminuiu a uma taxa maior do que para aqueles com 25 anos ou mais,29 com o emprego para jovens nos países do G20 caindo em torno de 11%.30
Tendências recentes sugerem a probabilidade de os jovens que conquistaram um emprego durante a crise passarem por estresse e ansiedade relacionados ao trabalho como resultado das rápidas mudanças no ambiente profissional devido à Covid-19. Cada vez mais jovens começam novos trabalhos de forma remota ou em outros locais, que não o ambiente tradicional, e continuam a trabalhar sem que ninguém em seu círculo imediato possa lhes dar apoio. A pandemia criou maiores dificuldades financeiras para muitos lares e os jovens sentiram de maneira mais acentuada o peso dos débitos estudantis ou a ausência de oportunidades de desenvolver as capacidades que precisam para as carreiras que desejam. Além disso, estudos indicam que as perspectivas de carreira são sombrias para um número cada vez maior de estudantes, com 40% deles expressando incerteza e 14% sentindo medo real sobre o que os aguarda no futuro.31
A recuperação econômica é demanda urgente, mas a menos que possamos aliviar a sensação de medo e de incerteza de tantos jovens e acender a chama da esperança no coração deles, não só as perspectivas econômicas, mas todas as esperanças de desenvolvimento social saudável permanecerão na escuridão.
Sobre essa questão, refiro-me às observações feitas pelos professores Abhijit V. Banerjee e Esther Duflo do Instituto Massachusetts de Tecnologia (MIT, sigla em inglês), cujo trabalho foi reconhecido com um Prêmio Nobel de Economia em 2019, o qual dividiram com o professor Michael Kremer da Universidade Harvard.
No livro que escreveram, Good Economy for Hard Times [publicado em português como Boa Economia para Tempos Difíceis], os autores refletem sobre o real significado de índices como o Produto Interno Bruto (PIB): “A chave, em última instância, é não perder de vista o fato de que o PIB é um meio e não um fim”.32
Alertando para o foco restrito à renda como lente distorcida que por vezes levou a decisões políticas erradas, eles argumentam:
Restaurar a dignidade humana ao seu lugar central (…) desencadeia uma reflexão profunda sobre as prioridades econômicas e os caminhos pelos quais as sociedades cuidam de seus membros, particularmente quando eles têm essa necessidade.33
Esse trabalho foi publicado no ano anterior à pandemia, mas acredito que a questão de construir uma economia que sustente a dignidade humana é mais relevante que nunca.
A importância de se ter trabalho não é exagerada quando consideramos as prioridades econômicas com um foco equilibrado e perspicaz sobre como ele pode reforçar a dignidade humana, tema fortemente ressaltado por Banerjee e Duflo.
O livro descreve como Banerjee, ao atuar no Painel de Pessoas Eminentes da ONU e contribuir para a elaboração dos ODS, conheceu e foi inspirado pelas atividades de um membro de uma ONG internacional. Ele e Duflo participaram de uma das reuniões que visava oferecer oportunidades de emprego para pessoas que passaram pela pobreza. Dentre os participantes dessa conferência em particular estavam uma enfermeira que ficou seriamente debilitada e incapacitada de trabalhar por vários anos após um acidente; uma pessoa que tinha sofrido com depressão severa; e um homem que perdera a custódia do filho devido a comportamentos relacionados ao Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).34
Essa ONG e suas atividades ofereciam aos professores algumas perspectivas para a reflexão sobre as políticas sociais. Uma delas era que “o trabalho não necessariamente se concretiza depois de todos os problemas serem resolvidos e as pessoas estarem ‘prontas’, mas é parte do processo de recuperação em si”.35
No livro, os autores também relatam o caso de um pai que conheceram. Ele foi capaz de recuperar a custódia do filho depois de obter trabalho, e o orgulho que o filho sentiu, por ele estar trabalhando, o inspirou. Nesse sentido, uma mudança na situação do homem produziu efeito cascata de felicidade para toda a família. Um dos ODS é oferecer empregos decentes para todos, incluindo as pessoas com deficiência, e o exemplo dessa família representa precisamente o tipo de mudança esperançosa almejada a partir da promoção dos ODS.
Na proposta que redigi em 2012, quando Banerjee estava atuando no Painel de Pessoas Eminentes da ONU, enfatizei que os esforços para conquistar os ODS deveriam concentrar-se não só em atingir metas, mas também em restaurar o sorriso no rosto daqueles que sofrem angustiados. Essa é uma prioridade que não podemos perder de vista enquanto lutamos pela recuperação econômica pós-pandemia.
Citando a necessidade de mudar a maneira como encaramos as pessoas atualmente ignoradas e abandonadas pela sociedade, Banerjee e Duflo argumentam:
Embora “possam” ter problemas, elas não são “os” problemas. Elas têm o direito de ser vistas como realmente são, e não de ser definidas pelas dificuldades que as cercam. Vimos repetidamente em nossas viagens para países em desenvolvimento que a esperança é o combustível que faz as pessoas seguirem adiante.36
Estou completamente de acordo. Quando as pessoas ganham acesso ao tipo de trabalho ou ao lugar que lhes permite plena manifestação de seu potencial único, o caminho se abre para que nossas comunidades e sociedades sejam banhadas pela luz da dignidade.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) agendou a convocação de fórum multilateral para a recuperação centrada no ser humano. Proponho que essa ocasião sirva de plataforma para que os países compartilhem boas práticas e aprendizados sobre a Covid-19, bem como priorizem os esforços para assegurar condições de trabalho decentes e humanas a todos, com foco especial na melhoria da empregabilidade dos jovens.
De forma semelhante, o trabalho de reconstruir a economia deve estar baseado no avanço da igualdade de gênero e do empoderamento feminino.
A pandemia colocou um fardo sem precedentes nos sistemas de saúde; globalmente, as mulheres compõem 70% da força de trabalho nessa área.37 A crise também forçou muitas mulheres a suspender suas carreiras ou a tirar licenças prolongadas do emprego para cuidar de membros da família e de outras pessoas próximas que ficaram doentes. Além disso, a grande proporção daqueles que perderam seus trabalhos era de mulheres, com maior impacto sentido pelas mães com crianças pequenas.
A desigualdade de gênero é um tema de importância crítica há tempos. A pandemia exacerbou essa desigualdade e intensificou os clamores por uma reforma fundamental. Uma iniciativa importante nesse sentido foi o Fórum Geração Igualdade da ONU Mulheres e outros parceiros em duas ocasiões no ano passado.
O encontro ocorrido no México em março de 2021 teve a participação de quase 10 mil pessoas de 85 países, e participantes remotos, que se dedicaram às discussões sobre as melhores formas de acelerar as ações e os movimentos pela igualdade de gênero.38 O fórum que se seguiu na França em junho e julho testemunhou a inauguração de um Plano de Aceleração Global para a Igualdade de Gênero com duração de cinco anos.
Além das cinco áreas para ação urgente, incluindo violência de gênero e tecnologia e inovação para a igualdade de gênero, o plano identifica a justiça e os direitos econômicos como prioridades fundamentais. Ao reconhecer questões como a disparidade salarial entre homens e mulheres, o plano aborda reformas econômicas sensíveis ao gênero para reduzir o número de mulheres que vivem na pobreza. O plano dá especial ênfase em aprimorar as condições de trabalho das mulheres que atuam na chamada “economia do cuidado”.
A realidade em muitos países é que o trabalho assistencial, como o cuidado de idosos ou de membros de outras famílias, por vezes não é remunerado e é realizado principalmente por mulheres. Em meio à crescente preocupação de que os trabalhadores dessa área carregaram o fardo da pandemia, o Plano de Aceleração Global para a Igualdade de Gênero faz um apelo aos países para que adotem reformas abrangentes por meio de medidas como investimento de 3% a 10% da receita nacional para expandir as oportunidades e aprimorar as condições do trabalho assistencial.39
Esse ponto também foi enfatizado pelo Plano Feminista, lançado pela ONU Mulheres em setembro do ano passado, o qual clama para que o cuidado seja colocado como centro de uma economia sustentável e justa.40 Estudos mostram que, atualmente, um grande número de pessoas no mundo requer algum tipo de assistência para conduzir sua vida. Isso inclui a estimativa de 1,9 bilhão de crianças abaixo dos 15 anos,41 um bilhão de pessoas acima dos 60 anos42 e 1,2 bilhão com deficiência.43 Os investimentos públicos em trabalho assistencial não só reduziriam o fardo colocado sobre as mulheres, mas também gerariam impactos de longo alcance, melhorando as condições de vida de muitos outros grupos demográficos, incluindo crianças, idosos e pessoas com deficiência.
Não podemos nos esquecer do papel essencial que o trabalho assistencial desempenha em levar a experiência indispensável de felicidade e dignidade para aqueles que recebem os cuidados. Uma maré de crescimento econômico não pode levantar navios que estão severamente danificados. No entanto, estou certo de que, ao aprimorar o trabalho assistencial de forma a apoiar diretamente a igualdade de gênero e o empoderamento feminino, poderemos construir sociedades que fomentem a subsistência, a felicidade e a dignidade de incontáveis pessoas.
Com base no espírito budista, filosofia que confere importância maior à felicidade e à dignidade de todos, a SGI tem mantido esforços constantes e sólidos para promover a igualdade de gênero e o empoderamento feminino.
Em janeiro de 2020, quando a ONU Mulheres lançou a campanha Geração Igualdade, a SGI e outras organizações baseadas na fé realizaram o seu simpósio anual em Nova York, em colaboração com agências da ONU, onde discutiram maneiras pelas quais as comunidades religiosas podem contribuir de forma mais efetiva para o avanço da igualdade de gênero. Durante o mesmo simpósio ocorrido em janeiro de 2021, seus participantes reforçaram a certeza de que a superação das desigualdades de gênero, também por meio de medidas político-econômicas, será essencial na reconstrução e na recuperação da Covid-19.
Hoje, a SGI apoia esforços para empoderar mulheres em comunidades carentes de Togo [África] por meio do reflorestamento. O projeto, iniciado em janeiro do ano passado em cooperação com a Organização Internacional de Madeiras Tropicais, apoia o reflorestamento e a proteção de recursos naturais em lugares onde houve perda rápida de cobertura vegetal, enquanto possibilita que as mulheres conquistem meios de subsistência e de independência financeira. Já existem planos atualmente em curso para realizar uma segunda fase, na qual os participantes do programa visitarão outras comunidades para se dedicar ao aprendizado mútuo e ao intercâmbio de experiências e melhores práticas em desafios compartilhados.44
Não importa quão crítica seja a época ou quão adversa seja a situação, os seres humanos são inerentemente capazes de trabalhar juntos para criar valor positivo e gerar ondas de mudança que podem transformar a época. Estou completamente convencido de que a igualdade de gênero e o empoderamento feminino são a chave para superarmos a crise da Covid-19 e construirmos economias e sociedades que sustentem a dignidade humana.
A Carta da Soka Gakkai Internacional foi adotada em novembro de 1995, no mesmo ano em que ocorreu a Conferência Mundial sobre a Mulher em Pequim, marco do ponto de partida de esforços dedicados a tornar a igualdade de gênero e o empoderamento feminino as correntes definidoras de nossa época. Com base nos propósitos e princípios da Carta da SGI — incluindo o compromisso de “salvaguardar os direitos humanos fundamentais e não discriminar nenhum indivíduo”45 —, continuamos a nos dedicar à resolução de questões globais.
Em novembro passado, adotamos nova e atualizada Carta da Soka Gakkai. Seus propósitos e princípios constam de dez pontos, incluindo o fato de que, com base no espírito budista de tolerância, a organização “respeitará outras religiões, promoverá diálogos e atuará em parceria para a solução de questões fundamentais da humanidade”. Expressa ainda nosso compromisso de “contribuir para a conquista da igualdade de gênero e promover o empoderamento feminino”.46
Enquanto movimento popular budista presente em 192 países e territórios, estamos determinados a continuar a expandir os círculos de confiança e de amizade como cidadãos que contribuem para a construção de um mundo de felicidade e dignidade para todos.
> Para ler a parte 5 de 8 clique aqui.
Notas:
28. OIT. World Employment and Social Outlook [Níveis de Emprego e Panorama Social Mundiais], p. 11.
29. Ibidem, p. 24.
30. OIT. Invest in Youth [Invistam na Juventude].
31. OIT. Youth & COVID-19 [Juventude & Covid-19], p. 26.
32. Banerjee e Duflo. Good Economics for Hard Times [Boa Economia para Tempos Difíceis], p. 205.
33. Ibidem, p. 9.
34. Veja Banerjee e Duflo. Good Economics for Hard Times [Boa Economia para Tempos Difíceis], p. 315–16.
35. Ibidem, p. 318.
36. Ibidem, p. 322.
37. Veja ONU Mulheres. Beyond COVID-19 [Além da Covid-19], p. 37.
38. Generation Equality Forum [Fórum Geração Igualdade]. Activism and Commitments [Ativismo e Compromissos].
39. Veja ONU Mulheres. Action Coalitions [Coalizão de Ação], p. 19.
40. Veja ONU Mulheres. Beyond COVID-19 [Além da Covid-19], p. 12.
41. ONU. Secretary-General’s Policy Brief [Sumário do Secretário-geral sobre Políticas], p. 15.
42. OMS. Ageing and Health [Envelhecimento e Saúde].
43] WeThe15. A Global Human Rights Movement [Movimento Global de Direitos Humanos].
44. Veja OIMT. Togolese Women Are Becoming Restoration Leaders [Mulheres Togolesas se Tornam Líderes de Reflorestamento].
45. Soka Gakkai. SGI Charter [Carta da SGI].
46. Soka Gakkai. Soka Gakkai Charter [Carta da Soka Gakkai].
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