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há 2 anos
Propagar a cultura do humanismo
Para despertar os valores universais e o espírito do respeito a si mesmo e aos outros
02/10/2023

A cultura é um bem da humanidade que não conhece fronteiras. Ela cria renovadas cores e tons na forma como as pessoas se comunicam, se relacionam e se comportam em sociedade. Alvo de intensos estudos, o termo “cultura” pode indicar tanto a produção artística quanto o modo de vida, o conjunto de saberes, a religião e outras expressões de um povo — o fato é que a todo o momento somos impactados pela culinária, moda, dança desses povos. Cada cultura tem suas próprias nuanças e vão sendo absorvidas, estabelecendo um precioso ritmo na evolução humana.
Como uma das mais acessíveis artes, a música ganha contornos nesta edição, com sua força impactante na saúde e no bem-estar, e na criação e no fortalecimento das relações de amizade e de paz. É um espaço para reflexões que contribuam para uma vida criativa, na qual deixamos de executar um ritmo de vida marcado por dissabores e compomos nossa própria partitura, vibrante de coragem e de esperança para encarar os desafios. Ao nos apropriar da força vital que existe em nós, aprendemos a extrair da vida o que ela tem de melhor.
A edição está repleta de estímulos. A música é tema. E quem cria a melodia da felicidade é você! Acompanhe!
Processo transformador
Há pelo menos 34 definições para o termo “cultura”, tamanha sua abrangência e latitude de pensamentos. Para o historiador e crítico literário Alfredoe Bosi, antes mesmo de tentarmos definir concretamente seu significado, vale a máxima de que ela pode ser entendida por meio de nossas experiências, do cotidiano e da apropriação das reflexões surgidas.
Cultura está ligada à experiência. Só existe cultura, realmente, quando vivemos estas determinadas experiências, quando nosso cotidiano é pensado. Então cultura de uma maneira genérica seria a experiência pensada, a vida pensada. Tudo aquilo que fazemos de maneira espontânea, por herança biológica ou por fatalidade social e que não é objeto da nossa reflexão, fica aquém da cultura.1
Por trás disso, há um ritmo dinâmico. Fazer das experiências vividas a força de propulsão para um processo transformador interno, denominado “revolução humana”, foi o objetivo da criação da Soka Gakkai, em 1930. À frente do seu tempo, o educador Tsunesaburo Makiguchi cunhou o termo “Soka”, reunindo em um vocábulo as palavras “criação” (sozo, em jap.) e “valor” (kachi, em jap.). Ou seja, a capacidade humana de dar sentido e valor a todas as ocorrências da vida, transformando-as em composições douradas da existência.
E como as experiências nos auxiliam nessa evolução? Uma das cenas que ganharam destaque no período da pandemia foi a manifestação de moradores de condomínios, vistos de janelas e sacadas tocando piano, violão, sax etc. Era o som da solidariedade nos fazendo experienciar a amenização da solidão e do medo que pairavam no coração de todos. Aplausos seguidos da sensação de quietude, consolo e o que mais coubesse no coração.
Essas recentes memórias demonstram quanto a música exerce poder na consciência coletiva e individual. O benefício se estende sobremaneira na saúde, e é científico. “Além de proporcionar diversão e prazer, a música tem a vantagem de melhorar a saúde de uma forma segura e econômica”, é o que destaca um relatório de 2020, intitulado Música em Nossas Mentes: O Grande Potencial da Música para Promover a Saúde Cerebral e o Bem-estar Mental, feito pelo Conselho Global de Saúde Cerebral (GCBH, na sigla em inglês). No documento, lê-se também que “ouvir, tocar ou compor uma melodia pode gerar uma sensação de bem-estar, reduzir o estresse, facilitar as relações interpessoais, modular o sistema cardiovascular, melhorar o equilíbrio e fortalecer o sistema imunológico sem nenhum efeito adverso”.2
Isso nos dá referências estimulantes de que um dos principais benefícios da música é a quebra de barreiras. Então, passamos a entender que ela pode expressar nossa individualidade, ao mesmo tempo em que nos exercitamos na convivência com pessoas diferentes de nossas crenças e gostos. A música tem o dom de unir na diversidade; e, no momento da vida de cada indivíduo, isso vale como um grandioso aprendizado para tudo.
A seguir, conheceremos um importante empreendimento do presidente Ikeda para o despertar da cultura do povo.
Alimento da alma
Para as pessoas nutrirem a vida com o que o mundo das artes tem de melhor, foi criada a Associação de Concertos Min-On,3 no Japão, que completa seis décadas de existência neste mês de outubro. Haviam se passado apenas três anos da posse de Daisaku Ikeda como terceiro presidente da Soka Gakkai, ocorrida em 1960, assumindo o legado de seus mestres antecessores, Tsunesaburo Makiguchi e Josei Toda. Trata-se de uma visão de futuro baseada na força da cultura e da educação como caminhos vitais para a consecução de um mundo de paz. O presidente Ikeda pondera sobre seu intento na criação da Min-On em denso poema:
A música evoca o coração
e faz ecoar a harmoniosa
ressonância da amizade
nas “cordas musicais da alma”,
na vida de todas as pessoas.
Esta melodia faz despertar
ora a coragem de viver,
ora a oração à paz,
e ora o orgulho humano.
A música possui a força
da virtude.
Desejo unir as pessoas
através da música
e então tocar para o mundo a
melodia do arco-íris de
cultura e paz.
Esse foi o meu sonho desde
os dias da minha juventude.4
Ao longo dos anos, a Min-On consagrou-se como o próprio nome é traduzido: “música do povo”, oferecendo às pessoas o melhor da música e das artes cênicas do mundo a preços acessíveis. As apresentações realizadas, como orquestra, música de câmara, ópera, balé, música popular, tango e dança folclórica, superaram muito mais de 60 mil exibições [até 2017, foram mais de 78 mil apresentações].5
No Centro Cultural Min-On, localizado no bairro de Shinjuku, Tóquio, está instalado o Museu de Música Min-On, com uma biblioteca contendo mais de 120 mil LPs e CDs, 45 mil partituras musicais e cerca de 30 mil livros de referência. O museu também exibe uma coleção de pianos antigos, caixas de música e instrumentos folclóricos de todo o mundo, conforme informações do site da instituição.6
Paz, cultura e educação formam a base de atuação na Soka Gakkai Internacional (SGI), nos mais de 192 países e territórios nos quais a organização mantém representação, unindo mais de 12 milhões de membros. Ao segurar firme a batuta, Ikeda sensei, hoje aos 95 anos, faz da regência do incentivo sua dedicação diária. Música para os ouvidos de pessoas de todas as idades, em especial as que sofrem. A seguir, vamos conhecer o exemplo de Beethoven e aprofundar nosso entendimento sobre o som da Lei Mística — Nam-myoho-renge-kyo —, recitado pelos membros da Soka Gakkai do mundo inteiro.
A força do som interior
Como é possível criar uma música que fale de alegria em meio a situações tristes e adversas? Essa é a fabulosa arte preconizada por Beethoven (1700–1827). É dele a imortal obra Nona Sinfonia, e seu famoso quarto movimento Ode à Alegria. Beethoven tinha menos de 30 anos quando ficou completamente surdo. Sem se abater, provou com sua obstinação que ouviria apenas o propósito que ardia em sua alma.
Existe somente um Beethoven, mas pessoas comuns também podem exercitar essa força interior, inata na vida de todos, identificada como “natureza de buda” por Nichiren Daishonin, que viveu no século 13. A angústia poderá ser transformada em esperança, o mesmo acontecerá com a covardia dando lugar à coragem de encarar as dificuldades e gerar renovada disposição de avançar. “Recitar Nam-myoho-renge-kyo é a maior de todas as alegrias”8 — é o que assegura Daishonin ao denominá-lo de som da esperança incontida no coração de todos. Uma vez recitado, é possível compor uma sinfonia de felicidade, que expanda seus sons para as pessoas ao redor.
Quando se abre para esta condição de buda, pessoas comuns assumem seu lugar no palco da vida. Assim como nas notas musicais, em que cada uma tem seu valor e sua característica, o estímulo dado pela Soka Gakkai é para que cada indivíduo cresça e se desenvolva, com respeito mútuo e livre do egocentrismo.
Essa é a força do movimento Soka, que encontra eco nas atuações de seus membros espalhados pelo mundo. Ao absorver a essência do ensinamento budista na vida diária, aplicam-na em suas ações cotidianas e fazem da cultura de paz seu modo de vida.
Nessa bem construída partitura, fundamenta-se a importância do diálogo na construção de relações humanas. “A paz é gerada apenas acreditando no bem que reside nos outros e na busca não por nossas diferenças, mas por nossas semelhanças”,9 enfatiza o presidente Ikeda. Ele reforça: “O diálogo é um tipo de criação musical produzida em meio aos sentimentos humanos”.10 Assim, ao buscar entender o coração do outro, os muros da desconfiança e da apatia são derrubados.
O movimento de unir as pessoas, acolhendo-as de suas tristes melodias e oferecendo a elas a canção triunfal da esperança, coragem e felicidade plena é chamado kosen-rufu.
Como então criar essa melodia?
O budismo elucida que é possível estabelecer um modo de vida criativo, no qual encontramos sentido em nossos dias e podemos avançar sem mudar quem somos, apropriando-nos da força criativa que está dentro de nós. Elencamos três pontos de reflexão e ação para essa conquista essencial:
Notas da felicidade
Há dias em que nem uma música alegre é capaz de nos devolver o ânimo. Ou cultuamos as lembranças amargas, mergulhando na escuridão. O budismo expõe, em contrapartida, que a pessoa na condição de vida iluminada de buda transforma aflições em alegrias, sofrimentos em satisfações, insegurança em esperança, preocupações em tranquilidade, e prossegue a vida transformando tudo. Jamais terá uma situação de estagnação.
Como elucidada por Nichiren Daishonin, a fonte dessa energia é a recitação do Nam-myoho-renge-kyo, que desperta para a mais elevada condição de vida.
Ikeda sensei ressalta: “Recitar o sutra é como declamar um poema. E recitar daimoku é como cantar uma obra musical. Nossa prática budista diária é a atividade mais cultural de todas”.11
Escreva a sua partitura
Passado e futuro são notas que não combinam com a partitura da revolução humana proposta na Soka Gakkai. O presente é o que importa, e estarmos cientes de que sofrimentos e dificuldades fazem parte e são naturais na vida de qualquer ser humano. Vida, filhos, trabalho. As pessoas que conseguem encontrar (e valorizar) seus esforços diários, firmam metas, desafiando-as com disposição e vivendo cada instante plenamente, criam a verdadeira sinfonia da felicidade. Em última instância, a felicidade não é algo que existe fora das pessoas. Ela existe dentro de nosso coração. É isso o que o budismo nos ensina.
Expanda o som da esperança
Assim como o som se propaga e atravessa tempo e espaço, a melodia da paz obtida em seu coração será capaz de alcançar a vida de todos ao redor.
A arte de viver
Viver de arte é um desafio grandioso, mas pude comprovar a força da prática da fé e da minha persistência em conseguir me destacar. Um dos meus maiores benefícios é a vaga que conquistei para trabalhar em uma companhia internacional, na qual me encontro há treze anos. É uma companhia francesa, chamada Kafig, que criou, em 2009, uma vertente brasileira, a Kafig Brasil. Por intermédio dela, tive a oportunidade de viajar para mais de 27 países.
Sou Diego Alves dos Santos, tenho 34 anos e comecei a dançar aos 9, cinco anos depois de minha família ingressar na Soka Gakkai. No início, era uma tia (Tia Paula) praticante que me acompanhava nas reuniões. Depois, eram meus pais que me levavam, e assim fui sendo inserido nas programações e, mais tarde, nos grupos horizontais dos jovens da BSGI. Integrei a banda Ongakutai e os grupos de bastidores Sokahan e Ohrinkai. Tenho plena convicção de que essas vivências foram primordiais para me preparar como valor para a sociedade e como líder.
O que me motiva é que, por meio da dança, consigo me conectar com as pessoas, tocar o coração delas, mesmo de forma inconsciente. O budismo nos eleva a essa sensibilidade aguçada, acredito.
Aprendi a fazer do tempo um aliado, e busco atuar em todas as frentes. Há momentos em que precisamos retomar a fé com força, e isso ocorreu em 2019. Uma importante turnê estava prestes a ser cancelada, em meio à fragilidade das relações com a companhia se acentuando. Minha prática não estava legal, minha luta já estava meio “água de salsicha” e, consequentemente, meus benefícios também. Tinha receio de que a companhia acabasse e eu perdesse meu laço com o mundo da arte internacional.
Após enfrentar muitos desafios, físicos e psicológicos, resolvi que não poderia mais passar por aquilo e simplesmente só aceitar a derrota. Voltei a me alinhar com minha prática da fé, com participação nas atividades e a ter maior interação com os membros. Foi então que obtive meu primeiro benefício rumo à vitória: a turnê não foi cancelada, somente parte dela. Assim, depois de mais de dois anos batalhando, por fim consegui subir num palco para dançar com meus amigos como verdadeiro vencedor.
Eu me sinto encorajado a cada dia, e minha alegria maior é ter conduzido doze pessoas a essa formidável filosofia, e do jeito mais simples. Se alguém me conta sobre alguma dificuldade, tento sempre mostrar como lidamos com essas situações. Sou budista Soka, com muito orgulho. Minha gratidão é gigante.
Cultivar o espírito humano
A cultura é viva e somos fruto dessa dinâmica interação com outras origens, costumes e práticas. É do aprendizado diário que a cultura se substância, no solo diário das intervenções humanas tão preciosas. Se o “barulho” das dificuldades soa alto aos ouvidos, é hora de ouvir o coração. E transformar todas as dificuldades numa inspiradora melodia de vitórias.
Como vimos, tal como as notas musicais, cada pessoa tem seu modo e estilo próprios. E como expõe o conceito budista da “cerejeira, ameixeira, pessegueiro e damasqueiro”,12 cada indivíduo pode manifestar tons vibrantes de sua personalidade, sem precisar ser outra pessoa. Na base dessa construção de uma vida afinada com coragem, sabedoria e esperança, o budismo revelado por Nichiren Daishonin permite que elevemos nossa condição de vida.
Por isso, não há razão para pessimismo. O momento é de cada pessoa assumir a batuta do seu carma e gerar valor para si e para as demais. Com essa visão de presente e futuro compartilhado, baseado no diálogo sincero e caloroso, deve ser voz que acalma e abraça o coração de quem sofre. É com o sentimento de acolher o coração do outro que a grandiosa melodia da paz ganha vida. Cultivar o espírito humano, no local em que se vive neste exato momento.
No topo: Acima, presidente da SGI, Dr. Daisaku Ikeda, cumprimenta Herbie Hancock, primeiro à esq., e Wayne Shorter no Auditório Memorial Makiguchi de Tóquio (Japão, out. 2007). Foto: Seikyo Press
Notas:
1. Disponível em: https://www.archdaily.com.br/br/966185/alfredo-bosi-cultura-ou-culturas-brasileiras. Acesso em: 7 set. 2023.
2. Disponível em: https://www.nationalgeographicbrasil.com/ciencia/2023/01/qual-o-efeito-da-musica-no-cerebro-das-pessoas. Acesso em: 3 set. 2023.
3. Para saber mais, acesse: https://museum.min-on.or.jp/
4. Brasil Seikyo, ed. 2.450, 12 jan. 2019, p. B2.
5. Ibidem.
6. Disponível em: https://www.min-on.org/music-museum/. Acesso em: 15 set. 2023.
7. CILE Digital. https://ciledigital.brasilseikyo.com.br/livro/63. Acesso em: 2 set. 2023.
8. Nichiren Daishonin Gosho Zenshu [Coletânea dos Escritos de Nichiren Daishonin]. Tóquio: Soka Gakkai, p. 788.
9. CILE Digital. Disponível em: https://ciledigital.brasilseikyo.com.br/livro/63. Acesso em: 2 set. 2023.
10. Ibidem.
11. Brasil Seikyo, ed. 1.555, 13 maio 2000, p. A3.
12. The Record of the Orally Transmitted Teachings [Registro dos Ensinamentos Transmitidos Oralmente]. Tradução: Burton Watson. Tóquio: Soka Gakkai, p. 220.
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