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Na prática
há 17 dias
Sabedoria, coragem e compaixão
O budismo caracteriza como bodisatva aquele que se empenha constantemente pela felicidade dos outros com base na sabedoria, coragem e compaixão.1 Os bodisatvas, além de enfrentarem seus desafios e buscarem a própria transformação, têm fé na natureza de buda das pessoas e manifestam o profundo desejo de despertar esse potencial de cada uma delas. Porém, o que seriam, na prática, a sabedoria, a coragem e a compaixão? Como cultivá-las em nossa vida? É o que discutiremos nesta edição, utilizando a história de um membro da Soka Gakkai, chamado Hisayuki Imura, como fonte de inspiração.
Redação
01/08/2025

Getty Images
No capítulo “Aceleração”,2 da Nova Revolução Humana, Daisaku Ikeda, presidente da Soka Gakkai Internacional (SGI), conta sobre a vida de Hisayuki Imura, um rapaz de 37 anos. Ele tinha esposa e três filhos pequenos. Trabalhava como contador em uma empresa de mineração. Em certo momento, Imura passou a sofrer com asma e tinha crises graves. A manifestação da doença o levava a faltar diversas vezes ao trabalho e, infelizmente, algum tempo depois, a empresa o dispensou.
A casa onde moravam fazia parte do contrato de trabalho, mas, mesmo com a demissão, foi permitido que ele e a família continuassem vivendo lá, desde que pagassem o aluguel. No entanto, após um tempo, a saúde de Imura não melhorou e, consequentemente, sem um emprego, eles não conseguiam pagar o aluguel.
Hisayuki Imura pediu ajuda a alguns parentes, mas sem sucesso. Ele e a família, então, tiveram de sair da casa e ficaram vagando pelas ruas procurando um local para morar. A cidade onde estavam, Hakata, em Fukuoka, foi encoberta pela neve e, em meio ao intenso frio, Imura chegou a pensar que a solução seria encerrar a própria vida. Porém, ao observar a sua família, decidiu continuar a buscar um lugar para viver.
Depois de muito vagarem, chegaram a um aglomerado chamado Dokan. Lá, Imura construiu um barraco feito de pedaços de madeira, esteiras de palha e chapas de alumínio. Nessas condições, juntou caixas de madeira, montou uma banca improvisada e passou a vender bolinhos de arroz e espeto de legumes junto com a esposa, próximo a um clube de corridas de lancha.
A realidade era intensamente precária e, no verão, as crises de asma de Imura ficaram ainda mais graves. Ele sentia profunda desesperança. Foi então que um dos clientes de sua barraca lhe ensinou o budismo. “Você também pode ser uma pessoa feliz!” Ao ouvir isso, descrente, Imura sentia uma dolorosa infelicidade. Entretanto, após dois anos, foi tocado pela convicção inabalável desse cliente que acabou se tornando um amigo. Mesmo não acreditando em tudo que o amigo lhe dizia, decidiu se converter ao budismo em novembro de 1955.
Ao recitar gongyo e daimoku, Imura começou perceber os benefícios em sua vida. Primeiro, em sua saúde, pois já não tinha mais crises de asma; e segundo, em seus negócios. O número de clientes aumentou gradativamente e sua condição financeira melhorou. Assim, Imura e família sentiam a esperança brotar na vida novamente, acompanhada de uma convicção cada vez maior. “Vou ser feliz!”, era o que ele pensava.

Ilustração mostra Hisayuki Imura e sua esposa vendendo alimentos na barraca que montaram
Até aqui, vimos que, pela benevolência de um amigo, Hisayuki Imura iniciou a prática da fé e experimentou benefícios, tais como a consciência da própria natureza de buda e a percepção de que é possível ser feliz da maneira como é, em meio à realidade que enfrentava. Dessa forma, extraiu de sua vida a esperança e a energia vital para realizar sua revolução humana. Levar a todas as pessoas a oportunidade de fazer essa transformação é a missão da Soka Gakkai e dos bodisatvas. Com relação a esse ponto, Ikeda sensei nos incentiva:
Ao longo da vida, os seres humanos se deparam com muita dor e sofrimento — doenças, perda de entes queridos, problemas no trabalho, na escola, com os filhos e na família. A Soka Gakkai e a SGI cresceram dando suporte e encorajamento às pessoas diante dos sofrimentos inevitáveis do nascimento, do envelhecimento, da doença e da morte por meio da empatia, com o incentivo contra o desânimo e a luta unida para agraciar nossa vida com a alegria da vitória, garantida pelo ensinamento de Daishonin de que “quando um grande mal ocorre, um grande bem o sucederá”.
Cada um de nós é capaz de fazer raiar, das profundezas do próprio ser, um sol que não pode ser apagado nem mesmo pelo mais rigoroso inverno. Podemos cultivar um jardim de esperança dentro de nosso ser, anunciando a primavera da felicidade, da alegria e da vitória. Essa é nossa crença inabalável.3
A luz da sabedoria
Depois de enxergar o brilho do sol em seu próprio coração, Imura se empenhou sinceramente em seu dia a dia, nas atividades da Soka Gakkai e em sua prática individual. Essa dedicação foi a grandiosa causa para que ele evidenciasse a sabedoria do buda, tanto para superar os problemas quanto para perceber a inter-relação entre todas as pessoas.
Com esse novo olhar, ele se defrontou com a realidade dos moradores de Dokan. Assim como o seu eu do passado, as pessoas que moravam no aglomerado estavam perdidas e sem esperança. Muitas delas tentavam escapar da realidade e se entregavam ao vício, outras viviam em condições tão precárias que comiam restos de alimento encontrados no lixo. Imura ainda tinha um longo caminho em sua jornada de transformação e vários desafios a ser superados, porém percebeu que não adiantaria se salvar sozinho. “Se eu como integrante da Gakkai não tentar ajudá-los, quem vai salvá-los?!” Imbuído desse sentimento, partiu para o diálogo com os vizinhos.
Coragem que rompe barreiras
“A verdadeira coragem não é notória”.4 Na maioria das vezes, quando pensamos em coragem, imaginamos uma pessoa que não tem medo de enfrentar o perigo ou de praticar esportes radicais. Imaginamos ainda um personagem de filme que vence vários inimigos com uma força incrível. Realmente, esses são aspectos da coragem. Contudo, nosso mestre Daisaku Ikeda elucida que a coragem da qual falamos no budismo é aquela que necessitamos para conduzir uma vida correta, para “empreender atividades sensatas, justas e benéficas para todos. É aquela que demonstramos quando vivemos com honestidade e tenacidade”.5 É aquela que evidenciamos quando respeitamos as pessoas e também quando incentivamos alguém a praticar o budismo.
Com essa coragem, Hisayuki Imura conversava com cada um dos vizinhos. Alguns o xingavam, outros duvidavam de suas palavras: “Nada poderá tirar a gente deste buraco”, muitos diziam. Mas ele mantinha firme convicção no budismo e em sua missão de ajudar as outras pessoas. Ao enfrentar a hostilidade e a falta de esperança dos moradores de Dokan, Imura, com o espírito de “jamais desprezar”, incentivava cada pessoa, com sincero coração, para que não desistissem da vida e que experimentassem a prática budista.
A profunda compaixão de um bodisatva
No budismo, a manifestação do desejo compassivo de levar as pessoas à felicidade não significa camuflar nossas emoções ou nos forçar a gostar de todas as pessoas. Ao contrário, a verdadeira compaixão nos permite compreender que mesmo as pessoas das quais não gostamos da personalidade ou do comportamento possuem sua missão única e o potencial inerente ao estado de buda. Além do mais, elas nos proporcionam oportunidades de fortalecimento e desenvolvimento.6 Ikeda sensei nos encoraja:
O budismo ensina que tanto o bem como o mal são potencialidades que existem em todos. A compaixão implica um esforço constante e corajoso para buscar o bem em qualquer um, independentemente de quem seja ou de qual for o seu comportamento. Significa esforçar-se constantemente para cultivar as qualidades positivas em si próprio e nos outros. Esforço, contudo, exige coragem. Existem muitos casos em que a compaixão permanece como mero sentimento devido à falta de coragem.7
Dois anos após se converter ao budismo, Hisayuki Imura fundou um bloco (a base para encontros de vida a vida) no aglomerado Dokan. Como responsável, ele e seus companheiros realizavam reuniões de palestra no canto de um depósito, ou, por vezes, apertados em algum dos barracos ou próximos aos postes para aproveitar a iluminação da rua. Nos fins de semana, incentivava os companheiros e ia junto com eles realizar visitas no centro de Hakata e até em localidades distantes como Kyushu e Chugoku. Por meio dessa luta, em 1962, o bloco alcançou cem famílias praticantes e se transformou em uma comunidade. As atividades se tornaram cada vez mais calorosas e os benefícios surgiam em todos os cantos do aglomerado Dokan.
De um lugar com pessoas sem esperança e que enfrentavam todos os tipos de problemas irrompeu a grande onda do kosen-rufu a partir da sabedoria, da coragem e da compaixão de um único bodisatva. A história de Hisayuki Imura e sua família foi apenas mais uma das histórias de vitória dos moradores de Dokan. Esse local desapareceu nos anos 1970 devido à construção do porto de Hakata. Porém, os nobres membros que dali se mudaram passaram a desbravar e a impulsionar o kosen-rufu em outras localidades, sempre conscientes de sua profunda missão como bodisatvas.

Membros da Soka Gakkai residentes no aglomerado Dokan em uma animada reunião ao ar livre
“O budismo ensina que tanto o bem como o mal são potencialidades que existem em todos. A compaixão implica um esforço constante e corajoso para buscar o bem em qualquer um, independentemente de quem seja ou de qual for o seu comportamento”
Dr. Daisaku Ikeda

Bodisatvas na vida diária
Com a história Hisayuki Imura, entendemos um pouco mais sobre as características de um bodisatva. Para ampliar ainda mais essa compreensão, Ikeda sensei nos indica, de forma clara, as funções de sabedoria, coragem e compaixão:8
- Sabedoria para perceber a inter-relação de todos os tipos de vida e de ambiente.
- Coragem para não temer nem negar diferenças, mas para respeitar e se forçar a compreender as pessoas de diferentes culturas e crescer por meio do contato com elas.
- Compaixão para cultivar uma empatia imaginativa que alcance além do ambiente ao redor e se estenda a outras pessoas que sofrem em lugares distantes.
Ao observarmos essa explicação do presidente Ikeda, compreendemos que fazer aflorar nossa natureza de bodisatva está diretamente ligado ao esforço para cultivar relacionamentos interpessoais saudáveis.
Quando criamos laços de confiança com as pessoas à nossa volta, a sabedoria, a coragem e a compaixão vêm à tona naturalmente. Ikeda sensei nos ensina sobre os “quatro métodos dos bodisatvas”, ações que nos conduzem à formação desses laços:
- O primeiro é o espírito de doação: essa doação inclui fortalecimento espiritual, incentivo e outras formas não materiais de suporte.
- O segundo é a fala amorosa, ou seja, falar de maneira gentil.
- O terceiro é a ação altruísta: agir em prol dos outros.
- E o quarto é o esforço compartilhado — trabalhar em união com outras pessoas.
A prática dessas quatro formas de conduta gera respeito entre as pessoas, melhora os relacionamentos, promove crescimento espiritual e alegra todos os envolvidos.9
As oportunidades estão no cotidiano
De que forma podemos aplicar esses métodos em nosso dia a dia?
Quando nos permitimos aprender amplas perspectivas sobre a realidade.
Uma maneira de expandir nosso olhar é conhecer uma cultura diferente. Não precisamos ir a outro país para aprender outra cultura, podemos encontrá-las bem perto de nós — os costumes das famílias dos nossos amigos, as histórias e os folclores de diferentes regiões do Brasil etc. Também podemos pesquisar sobre as tradições de outros países. Esses exercícios trazem ao nosso cérebro a habilidade de nos imaginar em diferentes situações, o que facilita a expressão da empatia. Ikeda sensei afirma:
“(...) a cultura é um empreendimento humano essencial, que vence distâncias e estimula o coração das pessoas de todos os lugares. Acredito que essa empatia entre as pessoas seja o ponto de partida para o intercâmbio cultural e o fundamento da cultura em si. A natureza essencial da cultura é a conciliação e a harmonia; é diametralmente oposta à força, em especial, à força das armas”.10
Outro ponto é o diálogo, o qual é importante para ampliar nossa visão sobre a realidade. Criar a oportunidade de dialogar tanto com as pessoas da nossa convivência quanto com aquelas que não fazem parte do nosso cotidiano ou que consideramos diferentes de nós — aí se encontra a chave para exercitar a natureza de bodisatva. O genuíno diálogo envolve o empenho de escutar as outras pessoas, de maneira ativa e presente. Assim, reconhecemos e aprendemos com os sentimentos delas, ao mesmo tempo em que permitimos que façam o mesmo conosco. Nesse exercício, em si, concentram-se os quatro métodos dos bodisatvas.
O presidente Ikeda apontou:
Seja qual for a situação, o caminho do diálogo sempre será positivo, propiciando o fortalecimento da solidariedade e da união. Recusar-se a dialogar é um erro e pode ser uma postura divisionista e destrutiva. O principal é se encontrar com o outro e dialogar. É natural que, algumas vezes, o nosso ponto de vista e o dos outros difiram. Entretanto, o diálogo gera confiança, mesmo entre aqueles cujas opiniões não coincidem totalmente. Na sociedade também o diálogo constitui o alicerce para a paz, enquanto a rejeição ao diálogo é a porta de entrada para conflitos e guerras.11

Hora de entrar em ação
Com o empenho na prática diária e nas atividades da Soka Gakkai, criamos a inabalável convicção de que podemos ser felizes da maneira como somos. O profundo desejo de levar essa grande façanha a todas as pessoas é a marca registrada do bodisatva. Com base nisso, extraímos da nossa vida diária as chances de evidenciar a sabedoria, a coragem e a compaixão, por meio da criação de laços genuínos com aqueles ao nosso redor.
Que tal pormos em prática “os quatro métodos dos bodisatvas” no nosso cotidiano? Vamos juntos ajudar a desenvolver esse “potencial criativo e positivo em todas as pessoas”12 e confrontar corajosamente a desesperança!
Notas:
1. IKEDA, Daisaku. Sabedoria para Criar a Felicidade e a Paz — Parte 2: Revolução Humana. São Paulo: Editora Brasil Seikyo, 2023. p. 127.
2. Idem. Nova Revolução Humana. São Paulo: Editora Brasil Seikyo, v. 6, p. 114-116, 2019.
3. IKEDA, Daisaku; WIDER, Sarah. A Arte das Relações Autênticas: Conversas sobre a Essência Poética das Possibilidades Humanas. São Paulo Editora Brasil Seikyo, 2025. p. 141-142.
4. IKEDA, Daisaku. Juventude: Sonhos e Esperanças. São Paulo: Editora Brasil Seikyo, v. 2, p. 79-80, 2020.
5. Ibidem.
6. IKEDA, Daisaku. Sabedoria para Criar a Felicidade e a Paz — Parte 2: Revolução Humana. São Paulo: Editora Brasil Seikyo, 2023. p. 127.
7. Ibidem.
8. IKEDA, Daisaku. Educação Soka: Por uma Revolução na Educação Embasada na Dignidade da Vida. São Paulo: Editora Brasil Seikyo, 2017. p. 122.
9. IKEDA, Daisaku; WIDER, Sarah. A Arte das Relações Autênticas: Conversas sobre a Essência Poética das Possibilidades Humanas. São Paulo Editora Brasil Seikyo, 2025. p 215.
10. IKEDA, Daisaku. Nova Revolução Humana. São Paulo: Editora Brasil Seikyo, v. 21, p. 290, 2019.
11. Idem. Sabedoria para Criar a Felicidade e a Paz — Parte 3: Kosen-rufu e a Paz Mundial. São Paulo: Editora Brasil Seikyo, 2024. p. 169.
12. Idem. Sabedoria para Criar a Felicidade e a Paz — Parte 2: Revolução Humana. São Paulo: Editora Brasil Seikyo, 2023. p. 128.
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